terça-feira, 22 de fevereiro de 2011

Diários de Calico #9

De todas as histórias e mitos do oeste que teimam em resistir à poeira do tempo havia um que sempre que fascinou as história de amor profundo e vil entre Madame De Lil e o Diabólico Bill, assim era chamada esta velha raposa do deserto, um arruaceiro puro e duro que durante muito tempo se diz ter calcorreado tudo quanto fosse metro quadrado de deserto até por fim ter sido um dos primeiros a fixar-se em Calico.
Conta-se que por essa altura o velho Finn ainda não tinha descoberto esta sua Irlanda do Deserto e que a cargo do Saloon estava uma senhora nos seus quarentas de nome Clarence De Lil, Madame De Lil para a maioria. E como para muitos, foi o amor de perdição de Bill, esse velho foragido não conseguiu resistir à beleza daquela senhora que tanto cantava e encantava mesmo sabendo-se pouco ou nada sobre o seu passado.
Mas falando verdade, De Lil também ficou perdida de amores por este visitante que chegara silenciosamente e não tentando dar nas vistas.

Ele não a perdera de vista um único minuto desde que chegara, havia uma imensa escolha de alojamento mas ele insistiu em ficar ali mesmo, no Saloon, perto do seu novo e aparentemente inabalável amor. Todos os dias descia à mesma hora, oito e meia da manhã, saía, dava os bons dias e rumava á cidade, voltava para almoçar ás doze horas e vinte minutos em ponto, finda a refeição tomava um copo de whiskey irlandês de puro malte e voltava a rumar á cidade para voltar definitivamente por volta das oito menos um quarto, altura essa em que comia algo e se sentava ao balcão do Saloon para não mais dali sair a não ser quando Clarence fechava.
Não falava com muita gente à parte da saudação matinal habitual a De Lil mas também nunca falhava um pagamento, sempre a pronto e sem falta. Toda esta rotina levantou a desconfiança entre os habitantes sobre qual seria o passado de Patrick Williams, assim era o nome verdadeiro desse Bill Diabólico. Uns apostavam em contrabandista, outros diziam que era um daqueles novos chefes de máfia vindos da Europa à conquista da América Selvagem, mas apesar desta divergência havia um consenso, tivesse feito o que tivesse feito, nada de bom poderia algum dia sair dali pelo que a maioria optava por manter a distância, pois... A maioria...

Já falei que De Lil havia ficado, à sua maneira recatada e discreta, perdida de amores por este novo personagem, intrigava-a o passado deste refinado mas misterioso senhor. Por um lado tinha feições rígidas e cansadas, típicas de quem passava uma vida de solo a solo sempre parar mas por outro tinha a educação, a pontualidade e a sofisticação de um puro ‘gentleman’. Se tudo isto não chegasse para fazer qualquer mulher suspirar seus amores aos céus, William era ainda um exímio tocador de Violino e quando disposto a tal, dava um ar da sua graça saltitando com o seu arco corda a corda o seu velho mas belo violino.
Com o tempo a cumplicidade latente entre Bill e De Lil era cada vez mais notória, ele havia perdido a sua feição rígida e esporadicamente esboçava um sorriso de pura felicidade. Havia até quem jurasse a pés juntos tê-los visto, numa limpa noite de Luar a passear pelas ruas vazias de Calico trocando poucas palavras mas imensos olhares.
Se a história for fiel á realidade então as suspeições infundadas de pouco ou nada importavam a partir do momento em que em pleno dia De Lil abandonava o seu saloon, de chapéu-de-sol ao ombro e acompanhada por William para um passeio por aquela espécie de rua que era nada mais que um amontoado de poeira assente. Não se entendia para onde passeavam nem o que tão belo haveria para ver naquele paraíso de pó e prata, quando a ouvi em criança não fazia mesmo sentido, se não havia baloiços nem bolas então para que iam eles andar?

Hoje, 50 anos depois percebo... nem sempre, num passeio, o importante é o destino ou a paisagem mas sim a singela companhia de uma bela rapariga, os olhares que se trocam ou, quem sabe, as palavras que ficam por dizer à custa de um olhar que por vezes recita uma autêntica ode ao amor. E enquanto para um jovem no seu apogeu conversar possa parecer patético, para duas velhas raposas como Bill e De Lil, para eles, recordar era mais que viver, era amar...

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