domingo, 13 de fevereiro de 2011

Diários de Calico #8

Gostava de quando ela me agarrava pela mão e arrastava a passos rápidos pelas ruas até invariavelmente me levar para um qualquer lugar que para mim não era mais que um terreno desértico com ervas rasteiras ou um amontoado de calhaus numa das muitas colinas que nos rodeavam. Isso agradava-me sobretudo quando percebia a razão de tão desenfreada correria, as razões geralmente prendiam-se em uma qualquer flor que miraculosamente florescia no meio de tanta poeira ou numa pedra que parecia ter sido intencionalmente esculpida para ter a forma da Lua.

Na maioria das vezes dava comigo a pensar se ela não pensaria à pressão em algo para justificar aquele aparentemente injustificável ímpeto; tudo isto para logo de seguida me maravilhar com o olhar fascinado que ela deitava a tudo e perceber que não havia outra intenção da parte dela senão partilhar comigo as notas que para ela eram as mais belas da sonata de Calico.

Pessoas haverão que por esta altura já estarão a rebuscar os seus dicionários para sinónimos pomposos para amor e eternidade e a arranjar maneira de conjugar estes dois termos mas a verdade é que será infrutífero… Ela era tão imprevisível quanto os veios de prata que rodeavam Calico e teimam em se esconder cada vez melhor dos mineiros cada vez mais enfeitiçados pela sua cor de luar; dizer que era amor isso que ela sentia ao me arrastar por esse horizonte seria tolo.

Conhecia-a bem e sabia perfeitamente que nunca alguém com uma alma tão livre se renderia assim, sem verso nem prosa, se assim o fosse não despertaria em mim esse fascínio desde o meu primeiro dia, desde os tempos em que era um pequeno rapaz que acabado de chegar a Calico procurava desesperadamente por alguém. Já me tinha sido permitido vislumbrar o suficiente para compreender que apesar de não conseguir viver sem ela isso não significaria necessariamente que a amava.

Gostava de estar sozinho com ela, fosse a olhar para as ditas flores ou simplesmente deitado nos poucos prados verdes, que existiam à beira do pequeno riacho, enquanto olhávamos para o céu como desculpa para não olhar para o vazio ou quando ela começava a despentear-me mesmo sabendo o quanto isso me irritava, mas ela adorava-o e como poderia eu negar tal prazer a alguém tão belo que com um singelo sorriso me reduzia o mundo a dois olhos, um nariz arrebitado, uma boca tímida de inicio mas irreverente com o passar do tempo ou com os mais belos e selvagens caracóis de cor castanha que alguma vez vira.

Não estava apaixonado, simplesmente não conseguia viver sem ela, o que era pior, pois o amor um dia, tal como tudo acaba e não resta senão a memória, cicatriz mais ou menos profunda. Já o que eu sentia era pior, não ia doer dali a um par de semanas, meses ou anos. Doía já ali naquele preciso momento unicamente com o medo de no dia seguinte ela não ter uma nova razão para uma vez mais me arrastar para apreciar um pequeno detalhe que nos deixasse maravilhados.
Mas ela encontrava sempre algo, havia sempre algo que ela queria que eu visse, cheirasse ou sentisse, entendem agora o quão angustiante era o medo? O receio de um momento para o outro perder tudo aquilo que ela com a sua simples existência me conferia era sem dúvida alguma pior do que o mais desgostoso dos amores, nada há como um grande amor para esquecer outro grande amor.

No caso dela não havia outro grande coração que me pudesse fazer esquecer o seu...

1 comentário:

Rita Leão disse...

Tão bonito. Gosto da forma como escreves... Acho que tens jeito e dou-te os meus parabéns ;)