sábado, 5 de fevereiro de 2011

Diários de Calico #6

Longos e resplandecentes eram os carris, negras como o breu eram as solipas, longínquas e árias eram por vezes as terras às quais chegavam, cruzando um território que de selvagem, nos dias que corriam tinha mais a fama que o proveito.
Cruzava rios, saltava penhascos, voava sobre ravinas de perder a vista para longo de seguida mergulhar na rocha escura e sombria.
Inúmeros foram os metros de terra que calcorreou, entre destinos e entre vidas, entre negócios e amores, entre guerra e paz, dia e noite, entre tudo e entre nada.

Para muitos uma fria máquina de ferros cuja negra nuvem cortava e destruía paisagens sem fim, para outros um imponente ‘puro sangue’ de madeira e aço que a toda a velocidade cruzava o deserto entre os uivos do vento e os gritos de guerra desses selváticos peles vermelhas que hoje em dia são não mais que objecto de ficção nos filmes e que então eram um medo constante. Apesar das divergências não havia ninguém capaz de se lembrar e afirmar não se tratar de uma das mais brilhantes e engenhosas invenções do génio humano e um dos grandes fundadores e impulsionadores de Calico.

Como em qualquer outra cidade que tenha nascido como Calico tudo começou com uma singela linha negra a contrastar com o amarelo do deserto. Primeiro um pequeno apeadeiro de carga que servia a mina e os seus mineiros que nos primeiros tempos repetiam aquela diária jornada férrea ao clarear da aurora e ao último raiar do crepúsculo nas carruagens já marcadas pela idade e pelos assobios alegres e carregados de uma melodia que só quem se aventurava terra a dentro compreendiam e partilhavam.

Eventualmente tomou-se a decisão crucial, era preciso que algo mais se desenvolvesse ao redor do pequeno apeadeiro, primeiro uma estação de correios, seguido de um telegrafo, um pequeno café, uma pousada e aos poucos Calico começava a surgir num mapa que antes só contava com terra. O velho apeadeiro de madeira dava lugar a uma nova estação com pedra polida e vidros não baços que espelhavam a alegria no rosto de todos quantos ali chegavam á procura de uma nova etapa de vida.

Sempre foram um indicador constante do estado de Calico os seus inicialmente reluzentes carris que com o passar dos anos e com o consequente malfadado abandono de Calico viriam a escurecer e a não conseguir salvar as suas outrora novas solipas da podridão.

Mas nem tudo foi infeliz nesta nobre linha férrea, muitos foram os momentos de alegria que deu á cidade, como a primeira vez que nela viajei com os meus pais rumo a um el dorado que apesar de toda a adversidade achávamos existir em Calico, e durante vinte anos esse paraíso de facto existiu, e todos os devemos à fiel locomotiva que apesar da idade nunca por um dia falhou um destino, essa robusta, infalível. e incrível peça de engenharia.

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