sábado, 30 de outubro de 2010

Diários de Calico #1

Guardo poucas recordações da minha infância, talvez por terem sido tempos difíceis para se conseguir ser criança ou por não sentir que tais tempos tenham realmente sido como seria de esperar, entre mudanças de terra em terra com os meus pais que duravam ora semanas ora meses. Uma das que nunca consegui esquecer foi aquela do primeiro dia em que cheguei a Calico: o meu pai dizia que se tudo corresse bem seria ali que encontraríamos a felicidade e a estabilidade que tanto ansiávamos – honestamente sempre o achei bastante ingénuo para um adulto que tinha passado por tantas adversidades ao longo da vida; não posso no entanto deixar de admirar a maneira como nos conseguia sempre alegrar lá em casa. Achei impossível que ao fim de tanto salto de um local para o outro pudéssemos realmente ser felizes num sítio específico; já estávamos habituados a não nos agarrar demasiado aos lugares por onde passávamos e às suas gentes pois em grande parte deles a nossa presença seria efémera, no entanto, ali foi diferente.

Se à chegada todo aquele ruído ensurdecedor me soava a um negro dia de trovoada e o fumo que emanava daquelas chaminés nada mais me lembrava senão a escura noite, bastou vê-la no jardim da casa ao lado a brincar com a sua boneca de trapos enquanto entoava uma canção que de modo algum parecia ser afectada por todo aquele ruído que tanto me incomodava; eu era tímido (sempre o fui, na verdade tímido não era o termo correcto, era...reservado) e apenas por isso me contive de logo ir perguntar-lhe como o conseguia fazer; como conseguia ter um sorriso na cara numa cidade que inspirava sofregamente trabalho e transpirava pó. A minha mãe percebeu logo tudo, característica fantástica essa inerente a qualquer mãe, baixou-se, sorriu-me e disse-me tão somente que ela era muito bonita e decerto seria simpática.

Com os anos aprendi que esses conceitos nada mais são que uma forma abstracta de tentar explicar porque se gosta mas a verdade é esta: nunca ao longo da vida somos capazes de ver com tanta clareza porque se gosta de alguém como quando somos pequenos, gostamos porque gostamos, e eu ainda mal a tinha visto e já gostava dela.

Não sabia o nome, nem a idade, nem tão pouco se tinha a voz suave e fina ou grave e grossa, se era carinhosa e amável ou se pelo contrário era uma peste insuportável... naquele momento tudo o que queria era unicamente estar sentado ao lado dela a vê-la segurar firme mas suavemente na sua linda boneca.

Os dias passaram e nem por uma vez ganhei coragem de lhe dirigir um mísero olá; dava comigo a ir brincar para o jardim sem ter vontade, eu queria lá saber de brincar... tudo o que queria era simplesmente olhar para ela, sentir o aroma que o vento trazia dela para mim e que, mesmo não o sendo, sabia melhor do que muitos dos beijos que dei nesta vida, ouvir as suas canções e adormecer à sombra da nossa macieira na esperança de sonhar com ela.

Os dias viraram semanas, as semanas viraram meses e a verdade é que tudo indicava que ali estava realmente aquilo que ao longo dos anos procurámos; pelo meio ultrapassei a infundada vergonha infantil que sempre tive e perguntei-lhe se queria ser minha amiga (engraçada a forma como se travam amizades quando somos pequenos, tão mais fácil e simples do que na vida adulta, quando se sente que a confiança essa é sempre garantida e que nunca precisaremos de duvidar ou desconfiar de nada).

Os meses rapidamente se converteram em anos, foi ao longo desse tempo e com ela que finalmente aprendi a triste mas doce melodia de Calico: das tubas que eram as chaminés; às cornetas que eram as picaretas, o rufar do tambor marcado pela dinamite passando pela voz e alma dos incansáveis mineiros e outros que tais.
Era para mim a mais rude mas agradável das melodias e a ela devo tudo isso, a ela devo o amor que tive e ainda hoje tenho por esta cidade. Há coisas que nunca esqueci, a sua música, nome, cheiro, cor, voz e alegria ficaram, devo-lho muito mas se houve algo que nunca lhe desculpei foi um dia ter levado a minha inocência e o meu coração e com eles ter desaparecido sem avisar e para não mais voltar...



...Até um dia... Passados muitos anos ...

sábado, 23 de outubro de 2010

Penguin Cafe Orchestra





Calcorreando as ruas de uma qualquer zona menos iluminada deste mundo é, na grande maioria dos casos convite a acabar a noite sem documentos e sem roupa; não deixa de ser no entanto verdade que por vezes a audácia (ou a loucura) de tentar tal façanha é recompensada quando por fim encontramos aquele café pelo qual corremos toda uma ruela pouco iluminada. O aspecto exterior não é de todo convidativo nem tão pouco existe um letreiro de boas vindas… existe tão somente uma melodia que ecoa pelas variadas portadas cerradas através das quais sai uma fraca luminosidade. Não é de todo convidativo bem sei, mas e porque não um último impulso irracional de alguém que anseia algo diferente de tudo aquilo a que já teve direito? Algo sublimemente fora de série e espectacular ao ponto de em cada acorde, em cada nota, em cada respiração provocar uma completa explosão no nosso interior, sentir um misto de alegria e tristeza, revolucionando de uma forma calma e metódica toda uma concepção do conceito de Música.

Não é algo fácil de se conseguir, especialmente porque é preciso saber entrar timidamente nesse pequeno e escuro café, encontrar o nosso lugar, pedir a nossa bebida e sincronizar a nossa batida com a da melodia que ecoa e enche a alma no preciso momento em que a última gota cai acompanhando o eco cada vez mais distante de algo que enchera aquele bar de uma maneira indescritível.

Não falo de algo utópico, a perfeição rítmica, criativa e apaixonada da Música realmente existe. Não é algo acessível, é uma musicalidade difícil e que só se compreende quando abrimos a mente e deixamos escapar tudo o quanto seja acessório na nossa vida, apenas quando música é tudo o que sobra somos capazes de sentir o vibrar do violino, o ressoar da caixa de rufo, o moroso sussurrar do baixo ou o silencioso tocar dos dedos nas teclas dos harmónios, pianos e órgãos; coisas que por si só seriam simples ruído tornam-se num contexto geral algo mais que conhecimento, muito acima do homem ou da vida. Tornam-se na mais perfeita melodia que aquele Café do Pinguim e a sua Orquestra nos podem proporcionar. Não é um tipo de música fácil, nunca o foi o Jazz quanto mais o Jazz de Câmara, é uma modalidade fechada e algo difícil de interiorizar mas trás com ele a promessa de conferir a quem lhe dedicar algum tempo a mais espectacular das sensações, que há coisas nesta vida que valem a pena.

Não basta ouvir ou ver, é preciso sentir, é preciso ser uno com ela, deixar que o mais simples som se faça ressoar através de nós e que com ele transporte um pouco da nossa essência.

De toda essa panóplia de informação biográfica desde terem tido 25 anos de actividade até terem sido simplesmente um dos mais influentes grupos de música de câmara na história da música, passando pelo seu trágico fim aquando da morte do seu líder e mentor, Simon Jeffes que desde o órgão à guitarra,passando pela flauta ou até pelo português cavaquinho, tudo sabia tocar e encantar; nada do que diga se poderá comparar à simples descrição de todo esse conjunto de sensações diferentes e únicas que Penguin Cafe Orchestra proporciona. Não me vejo como um guru musical, vejo-me sim como um vendedor de sonhos que de bom grado e em troca de um sorriso partilha aquilo que ainda vai dando alguma cor a esta vida que cada vez mais é em tons de sépia.

Há música em mim, em ti, nele, nós, vós e eles. Desde as mais profundas entranhas da terra ao mais alto dos planaltos, do calor do deserto às neves das montanhas. Tudo isto é Música, tudo isto é Vida.


Penguin Cafe Orchestra
Site

sexta-feira, 22 de outubro de 2010

É tão simples...

"Anda, desliga o cabo,
que liga a vida, a esse jogo,
joga comigo, um jogo novo,
com duas vidas, um contra o outro.

Já não basta,
esta luta contra o tempo,
este tempo que perdemos,
a tentar vencer alguém.

Ao fim ao cabo,
o que é dado como um ganho,
vai-se a ver desperdiçamos,
sem nada dar a ninguém.

Anda, faz uma pausa,
encosta o carro,
sai da corrida,
larga essa guerra,
que a tua meta,
está deste lado,
da tua vida.

Muda de nível,
sai do estado invisível,
põe o modo compatível,
com a minha condição,
que a tua vida,
é real e repetida,
dá-te mais que o impossível,
se me deres a tua mão.

Sai de casa e vem comigo para a rua,
vem, q'essa vida que tens,
por mais vidas que tu ganhes,
é a tua que,
mais perde se não vens.

Sai de casa e vem comigo para a rua,
vem, q'essa vida que tens,
por mais vidas que tu ganhes,
é a tua que,
mais perde se não vens.

Anda, mostra o que vales,
tu nesse jogo,
vales tão pouco,
troca de vício,
por outro novo,
que o desafio,
é corpo a corpo.

Escolhe a arma,
a estratégia que não falhe,
o lado forte da batalha,
põe no máximo o poder.

Dou-te a vantagem, tu com tudo, eu sem nada,
que mesmo assim, desarmada, vou-te ensinar a perder.

Sai de casa e vem comigo para a rua,
vem, q'essa vida que tens,
por mais vidas que tu ganhes,
é a tua que,
mais perde se não vens.

Sai de casa e vem comigo para a rua,
vem, q'essa vida que tens,
por mais vidas que tu ganhes,
é a tua que,
mais perde se não vens.

Sai de casa e vem comigo para a rua,
vem, q'essa vida que tens,
por mais vidas que tu ganhes,
é a tua que,
mais perde se não vens.

Sai de casa e vem comigo para a rua,
vem, q'essa vida que tens,
por mais vidas que tu ganhes,
é a tua que,
mais perde se não vens.

Sai de casa e vem comigo para a rua,
vem, q'essa vida que tens,
por mais vidas que tu ganhes,
é a tua que,
mais perde se não vens"


Deolinda - Um Contra o Outro

terça-feira, 12 de outubro de 2010

Terra do Nunca

Diz-me, quantas vezes sentiste esse alucinante e surreal sentimento de alegria no seu estado puro? Esse que te faz voltar à folia da infância há muito acabada: desde o primeiro soldadinho de chumbo com a sua fiel baioneta e a indispensável corneta, até ao primeiro camião de obras, passando por toda essa parafernália de gruas, homens de pás e picaretas.
Isto sem nunca esquecer as betoneiras a completar toda uma equipa indispensável à construção e protecção dessa fortaleza de sonhos e aspirações que tão soubeste construir e manter e, por fatalidade da vida, cujo projecto perdeste por completo à medida que o tempo, sempre esse vil e desleal adversário, passou por ti transformando o menino em jovem e em homem; uma troca injusta de felicidade e inocência por maturidade e dever…

Deixaste de ser o pequeno e genial projectista que ao seu lento ritmo construía um após outro os alicerces da sua bela juventude, para te tornares num mestre obras de coração frio que a tudo e todos deve temor e desconfiança. A beleza e a imponência pouco mais são que o resultado do sacrifício forçado e pouco apetecível da criança que eras para te tornares no sombrio ser que tanto recearas e negligenciaras ao longo desses anos dourados, agora finados.
O soldadinho deixou de tocar a sua corneta e desertou do seu posto de guarda, os teus trabalhadores, esses que outrora com alegria e engenho tanto construíam e projectavam agora, sem matéria prima para continuar o teu sonho de menino, partiram em busca de quem de braços e alma abertos os recebam.

Resta-te apenas essa tua velha e poeirenta fortaleza, que é agora pesadelo persistente da glória e esplendor que um dia tiveste e para sempre perdeste. Os trovadores já não se ouvem, apenas o vento canta por entre as gélidas e inóspitas paredes de pedra. A obra mantém-se mas a alma desmoronou e não mais lhe dará vida...

sexta-feira, 8 de outubro de 2010

Music for a Found Harmonium

Falar de música é acima de tudo falar de ti e do modo como concentras em ti o que sobejamente há de melhor nela.
Como o teu sorriso lembra a mais alegre das canções ou como o teu simples andar pela mais modesta rua é tão mais que isso trazendo à memória toda a elegância e glamour do soul do qual és a sua inegável diva.

A forma singela como um mero respirar teu não sai do compasso estabelecido pelo teu coração, maestro e compositor de toda a música que és e há em ti. A pureza e leveza do teu ser à qual balada alguma se poderá equiparar de tão indefinível que é; pois toda tu és arte e graciosidade que marca qualquer um afortunado o suficiente para sentir em si nem que seja uma pequena porção da imensa Ode que de ti exalta.

Como não suspirar pela honra de desfrutar de tudo isso: desde a tua alegria ao teu desespero que transforma o mais agradável dos luares no mais escuro dos calabouços da noite onde apenas penetra o vil e depressivo Jazz e dar a experimentar toda uma sensação de impotência para com o sofrimento da frágil e delicada alma que no fundo de ti existe, por trás de toda essa rebeldia que música alguma um dia chegará para descrever.

A tua essência requer, tal e qual a mais sensível das árias, o maior carinho dos músicos para com a mais sublime das melodias, escrita pelas tuas mãos que são a caneta de pena em tons de vermelho marca para sempre essa infinita e bela pauta musical que é a vida; a sua e mais concretamente a dos pobres de alma que ambicionam um dia simplesmente senti-la ecoando nos seus afortunados ouvidos vinda quer da tua voz, suave como a ancestral mas não menos romântica e harmoniosa Harpa, do leve assobiar da primeira brisa matinal ou do último raiar do crepúsculo; tendo sempre por musa essa unicidade que és tu.