sábado, 18 de dezembro de 2010

Diários de Calico #5

O Swing saltitava entre as tábuas do velho soalho que rangia com o frenético dançar, o qual serpenteava por entre o fumo que enevoava o ar e o álcool que iludia a alma. Assim se pode descrever numa única frase o ambiente do Irelander. Chamava-se assim por o seu dono, o velho Finn O'Mcdonald (Finn O'Mac para os amigos), ser originário de Kildare. Para ele aquele bar era o mais parecido com os verdes prados do condado de Cork ou a espuma preta de uma boa caneca de Guinness que ele podia encontrar no meio daquele amontoado de pedra, terra, sol e madeira a que um dia se decidiu chamar Calico.

A música era uma constante, não poderia existir um Saloon como aquele sem ela. O velho Finn era uma amante de música e sempre que se lhe dava a mínima hipótese lá estava ele a trocar os copos e as garrafas de whiskey e gin pelas velhas teclas de marfim do seu piano ou as gastas cordas do seu violino ou algo menos rebuscado como uma simples harmónica. Fosse em que instrumento fosse ele provava ser exímio em qualquer um deles mas mais que isso, tinha a capacidade de contagiar todo um bar que mal ouvia os primeiros acordes ganhava uma nova vida. Era uma rambóia interminável essa que todas as noites enchia aquelas simples paredes de animação e alegria fazendo com que os contratempos do dia a dias fossem algo minúsculo e insignificante

Mas nem só de música vivia o ambiente boémio do Irelander, o seu encanto também ficava em muito a dever-se a simples características como o seu ar carregado pelo fumo do cachimbo ou as conversas de fundo que enchiam aquele espaço e faziam parte da vida de toda uma cidade que mal o relógio batia nove badaladas ali rumava; quem sabe para também ela achar um pouco do seu sentido entre o flamejante swing ou o melancólico Jazz.

Mas o que seria de um bar se não tivesse um bom par de rixas e escaramuças na sua história para exibir como se fossem condecorações de guerra e no caso do bar do O’Mac não era preciso esperar muito para ver uma. Era tão-somente uma questão de numa das muitas mesas algum trapaceiro tentar passar a perna às velhas raposas de Calico e ser apanhado. Num piscar de olhos todo o bar estava envolvo num enorme reboliço que à falta de melhor razão servia para mostrar ao forasteiro a raça e a alma daqueles com quem lidava. Cadeiras berravam, os murros silvavam entre os palavrões e o calão. Todo um pacato ambiente transformado no mais caótico dos campos de batalha, toda uma população aparentemente civilizada transformava-se na mais selvática tribo bárbara.
Chamem-me louco ou inconsciente mas sempre achei que estes momentos de violência gratuita eram uma necessidade daquelas vidas que naquele momento ali bravamente se debatiam umas contra as outras. Para mim, um bom serão no Irelander devia incluir um pouco de tudo, um bom copo de whiskey, um bom cigarro, uma boa música de fundo e uma sessão de pancadaria das antigas.

Se isto tudo já não fosse mais que suficiente para fascinar o jovem que existia em mim na altura havia algo ainda mais surreal: O McDonald apesar dos seus cinquenta e muitos anos era sempre o primeiro a amotinar tudo e todos para a pancada e mal esta estava lançada ia-se sentar no seu piano a tocar uma música condigna com a presente escaramuça. Era um gosto adquirido - dizia-me ele – o caos acompanhado pela arte. Pensando bem, num local que sorvia tanto da sua existência nas melodias da vida, algo tão característico do Irelander, como eram as suas muitas noites de confusão boémia, não poderia acontecer sem ser ao ritmo desta. Não poderia ser de outra forma.

Estranhamente, com o passar dos anos, cheguei à conclusão que tudo aquilo que se desenvolvia no Irelander era essencial às vidas dos que por lá perdiam parte da sua existência. Nunca percebi bem porquê mas sentia que tinha razão através do vigor dos socos que eram trocados, do timbre dos gritos de guerra lançados ou no brilho estampado no olhar daqueles que, tal com o Finn O’Mac, apreciavam tudo quanto o Irelander podia oferecer

E só quando por fim, já envolto pelo breu da noite, o abraço do silêncio e a mordaça da solidão; a calma voltava ao Irelander de o velho McDonald fechava as portadas, trancava as portas e seguia rua fora assobiando à lua, sua fiel companheira, a mesma canção de sempre é que Calico ia dormir.