quarta-feira, 28 de maio de 2008

Fantasmas Passados 1976 - Capítulo II - Xadrez Humano

Manuel saira do bar era já noite cerrada, aquele enorme sobretudo dava-lhe um ar imponente, fazia lembrar os antigos oficiais da Wehrmacht, as nuvens que haviam permanecido naquele imenso céu durante todo o dia haviam desaparecido e agora era possível ver o céu totalmente estrelado, no entanto havia-se levantado uma ventania incomodativa, a qual indicava que as nuvens voltariam, quem sabe se os seus problemas que agora pareciam tão afastados não voltariam também, e este presságio foi tomado como uma certeza.

Passada após passada, cruzava aquela cidade que apesar deserta e ainda mais escura parecia convidar para um longo passeio de modo a desfrutar de uma calma que de dia não existe. Enquanto passava por um parque reparou em 2 pássaros empoleirados num ramo e encostados um no outro...Agora até uns quaisquer animais troçavam da sua solidão, que raio se passava, porque razão tudo isto estava a acontecer tão subitamente, durante dez anos nada nem ninguém lhe haviam suscitado comportamentos ou emoções humanas, nas 6 horas passadas tudo parecia ter voltado à vida em si, as emoções, os sonhos, até os medos que há dez anos o haviam abandonado de tão tormentosa que era a sua mente.

Deu mais uns passos até que reparou em alguém que se encontrava sentado num muro á beira rio, curioso aproximou-se na esperança de pelo menos poder partilhar da companhia e daquele luar sombrio.
Chegado ao pé do vulto sem ter dito uma única palavra apenas ouviu:

-Venho para aqui acima de tudo ouvir, e que ouço eu? O silêncio da noite, os gritos mudos das folhas que caem em direcção ao rio ou das gotas de água que escorrem pelos candeeiros, o pó que sozinho se levanta e viaja até onde o vento o levar... Sim... Para ouvir...
Ouvir o que normalmente não tem som, ver o que não pode ser visto, sentir o que não existe, ser o que não fomos...de pouco adianta agora, até um dia destes meu jovem...e lembra-te, não existe o nunca.... Apenas uma infinidade de contradições...

Dito isto afastou-se deixando Manuel profundamente calado mas ao mesmo tempo surpreso, há muito que não ouvia algo assim, aquela voz rouca e grave dava a ideia de uma pessoa de idade mas o entusiasmo com que havia sido dito sugeria alguém jovem e ansioso por viver, este antagonismo era realmente inquietante, sem ouvir com os olhos sentia-se perdido, não sabia se deveria considerar aquele monólogo como um legado de toda uma vida gasta ou a expectativa de toda uma vida pela frente Seria um ensinamento ou um devaneio tolo? Estava realmente tudo contra ele, mas que fazer? Sentia-se pequeno perante aquelas palavras ditas de forma serena mas sólida.



Ele é que se havia aproximado do vulto, não havia sido chamado, ouviu porque queria ouvir, no fim de contas era isso que pretendia de inicio, ouvir, e naquele momento ouvia muito mais do que alguma vez ouvira, o silêncio parecia mesmo murmurar algo para com as folhas ou as gotículas de água, quem sabe se não seria a história daquele estranho personagem que... nesse momento reparou em algo a abanar levemente ao sabor daquela brisa que se havia levantado, um papel, OUTRO PAPEL! Apressara-se a agarrá-lo antes que este tivesse oportunidade de fugir para longe dali, desdobrou-o e numa letra algo ilegível conseguiu ler:

"Através das eternas ondas do tempo ele virá
tal como da pequena onda nascerá a tormenta"

Ficara simplesmente petrificado, agora mais do que nunca estava convencido que aquele homem não havia dito aquilo apenas para parecer bonito, ele sabia algo que lhe escapava, era necessário a todo o custo achá-lo, mas não seria àquela hora nem tão pouco naquele estado que o faria, era preciso cabeça fria acima de tudo. Optou por isso por guardar aquele estranho papel e analisá-lo novamente mais tarde.

Enquanto caminhava mais decidido do que nunca a fechar aqueles dez anos da sua vida e com eles todos os demónios que deles se alimentavam, uma enorme melancolia tomou posse sobre o seu corpo durante os minutos que se seguiam, era muita coisa a acontecer ao mesmo tempo, para muitas ainda não havia arranjado uma justificação nem tão pouco uma razão, estava completamente as escuras, tal e qual como a rua para onde se dirigia...

A meio da rua apercebera-se de que estava a ser seguido, conseguira distinguir três vultos por entre as sombras mas nada lhe garantia que não houvessem mais, seria totalmente irreflectido correr ou executar qualquer acção... Estava preso num xadrez humano que não pretendia jogar e como é sabido, as brancas começam...

C O N T I N U A

segunda-feira, 12 de maio de 2008

Fantasmas Passados 1976 - Prelúdio.

Era uma fria tarde de Novembro, por entre as poças de água e olhando para as fachadas sombrias de velhas casas abandonadas, das quais apenas o tempo tem noção da idade, alguém andava como se não soubesse ao certo para onde se dirigir, agora que pensava nisso não sabia bem porque razão caminhava tão apressadamente, tinha tempo de sobra para aquele encontro, eram dezassete horas e vinte e cinco minutos, havia combinado ás dezoito horas e trinta minutos à porta daquele já familiar edifício, era quase uma segunda casa para ele(não pelas melhores razões), tempo era o que não lhe faltaria contudo, e por uma estranha razão hoje mais do que nunca queria chegar cedo aquele lugar, não sabia bem porque razão mas não ia contrariar tal vontade, os passos largos ecoavam naquela rua, o facto de estar deserta provocava um daqueles ecos típicos de um filme de terror, a isto juntava-se a sua respiração ofegante e estava composta a banda sonora daquele momento...

Uns metros mais à frente a chuva começa a cair, o jovem de 20 anos (cujo nome por agora é irrelevante) apressa mais a passada, nunca gostara muito de chuva, mas naquela altura do ano não vinha mesmo nada a propósito... Lembrava-lhe recordações de criança e da sua mãe, agora falecida vítima dessa sempre malvada tuberculose, custava-lhe especialmente lembrar-se de que desde aquele fatídico dia nunca mais a veria, fazia neste preciso dia dez anos que tal fatalidade ocorrera, e apesar de ter aprendido a viver com isso, era sempre uma data ignóbil, mas esta em particular preparava-se para ser ainda pior, o dia estava a pôr-se de feição para ser uma cópia exacta daquela tarde de Outono de 1986. Quem mais iria estar presente? Desde que perdera a sua mãe ficara entregue ao seu pai até este ter cedido à bebida e a sua tutoria ter sido entregue a uma tia que melhor ou pior o criou. Mas também esta o havia deixado, a vida não lhe era propícia, ainda assim nem por um momento considerara a saída mais fácil, não depois dos sacrifícios que tanta gente fez para que pudesse ter a vida que tinha, não era mais um mal agradecido, tinha de triunfar mas nesse preciso momento a sua confiança e vontade começavam a ser abaladas enquanto era invadido por um misto de recordações dolorosas e marcantes. Naquele momento era ele, só ele...e aquelas ruas vazias que pareciam não ter fim por onde nem o som do vento se conseguia impor, e no entanto ele continuava a caminhar, sem reduzir a passada com os cabelos já molhados e a água a escolher-lhe pela cara tal como um rio que desce uma montanha lenta e angustiosamente.

Eram dezassete horas e dez minutos quando chegou ao seu destino, um hospital. Conhecia-o por ter sido naquele mesmo local que há dez anos lhe haviam dado a triste notícia de que a sua mãe não havia aguentado. Naquela manhã recebera um telefonema a perguntar por ele, foi-lhe pedido que se deslocasse uma vez mais até aquele piso número cinco, sala quatrocentos e nove. Assim o fez...

Quem o atendeu foi uma figura já muito conhecida da sua parte, tinha sido o médico de sua mãe e sua tia quando estas se encontravam em fase terminal, era um homem alto de feições rígidas que aparentava estar na meia ideia, facto que era corroborado pelo seu aspecto facial, barba por fazer, olhos cansados, óculos pendurados ao pescoço pois a idade nem a vista poupa, a sua voz algo rouca denotava um cansaço fora do comum, típico dos médicos que ainda dão algum valor ao estectoscópio que trazem consigo. Havia-o chamado aquele mesmo local onde em tempos o havia amparado com aquelas tristes noticias para lhe entregar algo que lhe havia sido confiado pela sua mãe pouco antes de deixar este mundo, junto com o pedido de apenas ser entregue decorridos dez anos da sua morte. Era um pacote com um aspecto gasto pelo passar dos anos mas que no entanto se encontrava bem conservado e selado tal e qual aquela singela senhora o havia deixado nas mãos do seu bom médico mas acima de tudo, amigo.

Com alguma dificuldade e a tremer abriu o pacote, dentro achou uma velha moeda que reconheceu prontamente e um terço enrolado ao que parecia ser um papel com algo escrito. Ao desenrolá-lo notou que algumas palavras não se notavam e no fim havia uma grande mancha de tinta como se a pessoa que escreveu tal coisa tivesse largado a caneta sobre o papel.





Leu o papel e saiu desalmado do gabinete do médico sem proferir uma única palavra, queria apenas chegar a casa, aquele misto de emoções cedo naquele dia quase que pronunciara isto, não queria acreditar que no seu leito de morte a sua mãe tivesse sido capaz de ver com tamanha precisão o que seria do seu filho findos dez anos da sua morte, mas a verdade é que o fez e isso emudecera-o por completo, durante dez anos forçara-se à ideia de que conseguiria ultrapassar isso mas o facto é que não conseguira e aquela carta aparentava ser muito mais do que apenas uma mera previsão. Acreditava que algo mais estaria encerrado naquelas linhas escritas a pena mas não o aceitava. Decidiu parar pelo seu bar habitual para tomar alguma coisa e se refazer do choque a que tinha sido sujeito. Pediu um Whiskey duplo enquanto por uma vez mais desenrolava aquele pedaço de papel. Uma jovem que se encontrava ao seu lado não pode deixar de desenvolver um enorme interesse por aquele vulto, a maneira como estava vestido( em tons escuros como se toda a alegria se lhe tivesse sido tirada) aliada á sua constituição física e à sua expressão fácil tornavam-no de entre os alcoólicos daquele bar o mais interessante. A todo o custo tentou perceber o que lia, até que leu algumas palavras e timidamente se dirigiu ao seu parceiro de balcão:
-Bonito poema, é daqueles que se vê uma vez e nos deixam a pensar, tem bom gosto.
-Desculpe, mas conhece este poema?
-Claro, Fantasmas do Passado de Rosário Cavalcante, à primeira vista parece simples mas nas suas entrelinhas reserva muitas dúvidas e ideias escondidas.
-Compreendo.-dizia, enquanto pela primeira vez em muito tempo olhava para alguém de maneira interessada- Quem sabe se não me poderá ajudar, deixe-me oferecer-lhe uma bebida se não se importar...

Pelas três horas seguintes falaram do que aquele poema poderia esconder, a jovem de seu nome Diana aparentava estar realmente a gostar da companhia e Manuel também aparentava corresponder embora de maneira mais dissimulada, certo é que muita coisa se preparava para ser abalada...



Prelúdio

F I M