sexta-feira, 26 de novembro de 2010

Diários de Calico #4

Das muitas vidas que cruzavam as poeirentas ruas de Calico nenhuma me fascinava mais que a do carteiro. Naquela altura e na zona do país em questão, o serviço postal era algo feito numa base semanal e era comum que pequenas cidades como esta partilhassem os serviços do mesmo carteiro o qual num galopar incessante e incansável trazia e levava as novas de terra a terra.

No caso de Calico, o carteiro era um homem a um par de anos da meia-idade, de feições não tão rígidas quanto as lendas do velho oeste insistem em caracterizar esses cavaleiros solitários. Tinha a face marcada pelas árduas jornadas sob um sol abrasador ao longo desse deserto que tantas vezes parecia interminável e implacável. Tinha um porte imponente: ombros largos, alto, voz grave, era alguém decididamente perfeito para as exigências da tarefa. De todas estas características nenhuma era tão bem conhecida como o som da sua harmónica a ecoar ainda a vários quilómetros de distância, cruzando os céus laranja e anunciando a sua chegada.

Em toda a minha vida convivi com vários carteiros mas nenhum, no entanto, me deixou tantas e tão marcantes recordações como este senhor que teimava em chegar ao cair da noite ao invés do primeiro raiar da alvorada. Ele que trocava o alegre cantar do viajante pelo triste sopro da sua harmónica que apesar de tanta tristeza carregar nenhuma à correspondência dizia respeito, distribuindo alegria através desses tesouros escritos em tinta sobre papel e tão ternamente acondicionados nesses belos e clássicos envelopes que ele fazia questão de não ficarem sem destinatário, promessa essa que tanto sofrimento na cara lhe espelhou.

Sempre o vi como alguém que tinha o deserto, a Lua e o seu fiel cavalo por únicos companheiros, não que achasse que isso o fazia infeliz. Das inúmeras vezes que o vi, nem por um único momento a sua melodia me soou como um choro... Soava a tristeza sim mas uma tristeza bela, algo digno de alguém que amava a sua vida e o seu ofício de tal modo que a simples percepção da efemeridade dessas jornadas audaciosas pelo deserto e de as suas aventuras não mais que uma vida durarem o entristeciam e faziam apertar a saudade de um deserto que ainda não havia perdido, mas que um dia inevitavelmente se iria, ele que foi a sua casa da qual o céu estrelado que tantas noites o seu tecto fora.

Nunca consegui entender o que certo dia o levou a deixar amizades, terras e amores, abdicar de sonhos e aspirações para se tornar num meio de transporte de sentimentos, levando a felicidade alheia de terra em terra a troco de sorrisos e do seu próprio esforço.

Muitos livros se escreveram sobre bandidos, xerifes, cowboys, aldrabões e outros que tais, mas nunca uma singela página foi dedicada a esta gente de fibra, que entre noites gélidas ao relento a manhãs enevoadas e inóspitas nunca deixaram uma mensagem por entregar, fosse ela uma cobrança de uma qualquer mísera dívida ou uma declaração de amor que para alguém seria o mundo.

Uma verdadeira lenda, seja onde for, havendo luar e um céu estrelado sinto aquela velha e tão familiar melodia a ecoar de novo ao meu ouvido e isso, de certa forma faz-me sentir tristemente feliz...

sexta-feira, 19 de novembro de 2010

Diários de Calico #3

Se há memória que não se perde é a do primeiro dia de escola. No meu caso isso seria equivalente a dizer que tenho várias memórias dessas mas, em verdade, poucas se comparam à que tenho de Calico.

A escola desta pacata cidade no meio do deserto plantada não era um edifício imponente, com ar moderno ou com um enorme letreiro a indicar a sua função. Era um edifício simples, de um só andar totalmente revestido de madeira, e apesar de ter já algumas marcas do tempo e das traquinices dos mais novos havia algo de intrigante nele que impedia de desviar a vista dele.
Apesar deste aspecto exterior algo degradado e pouco convidativo o seu interior era acolhedor, não por ser novo ou estar arranjado, muito pelo contrário.

Desde o soalho de madeira que rangia sem timidez nos mais variados tons, com os quais a criançada se divertia a compor melodias como se este de um enorme piano se tratasse, às portadas das janelas que batiam de acordo com o silvar do vento pelas pequenas falhas entre as tábuas que erguiam aquele lugar que apesar de tudo tão mágico era.

E numa dessas salas lá estava ela, sentada na sua secretária iluminada apenas pelo seu candeeiro e com os óculos pendurados ao pescoço, à espera dos seus petizes para, por uma vez mais, os fascinar com histórias dos mais famigerados fora da lei, inimigos da ordem e heróis populares, com um entusiasmo que só ela era capaz de transmitir e que nos fazia imaginar como seria cavalgar sem rumo por todo esse oeste selvagem que tantas lendas criou, território dos bravos, paraíso dos destemidos, terra da liberdade, de todos e de ninguém.

Tinha um talento natural soberbo para naquelas cerca de cinco horas nos abstrair de quaisquer adversidades do dia a dia, criando todo um imaginário de fantasia e ficção nas nossas cabeças a partir de meras letras impressas nas folhas, já amarelas da idade, daquele velho livro de capa dura e escura, digno de figurar numa qualquer biblioteca renascentista.

A sua voz convencia e o seu tom encantava, despertava o fascínio de todos quantos tinham o prazer de conviver com ela. Desde o carteiro, que todos os dias inventava uma nova razão para bater à sua porta, ao merceeiro que, no seu jeito meio grosseiro, diariamente lhe ia levar uma flor em jeito de corte numa tentativa vã de chamar a sua atenção e tentar disfarçar a sua notória falta de jeito para estas vidas de amores.
Ninguém lhe conseguia passar despercebido desde o dia em que chegara aqui. Foi acolhida como sendo a filha exemplar e há muito desejada de Calico.

Todas as histórias precisam de protagonistas e todos os romances suspiram por... algo mais...

sexta-feira, 12 de novembro de 2010

Diários de Calico #2

Viver em Calico não era propriamente fácil, era um território ingrato que não dava nada sem contrapartidas; não rendia a sua riqueza à ambição humana sem antes reclamar o seu preço no sofrimento que estampava nas caras de outros que tal como o meu pai ali chegaram atraídos pelo seu traiçoeiro canto de felicidade e prosperidade.
Era uma terra inóspita, trabalhada solo a solo, sem outra cor senão o castanho do pó e o laranja nos confins do seu horizonte, onde a terra abraça o céu.

Apesar de tudo quando exigia a vida nesta pequena cidade estava longe de ser um inferno, era um exemplo vivo do sonho americano, dia após dia, semana após semana inúmeros eram os que chegavam atrás da prometida vida nova que Calico aparentava oferecer, longe de toda a miséria a que alguns pareciam condenados.

Lembro-me especialmente daqueles finais de tarde depois do jantar, no alpendre de nossa casa. A minha mãe ia-se sentar na cadeira de baloiço levando com ela as suas agulhas e começava a tricotar a mais variadas peças de vestuário, desde uma camisola de lã de cores berrantes e capaz de embaraçar qualquer rapaz de 6 anos até um qualquer par de meias... Enquanto isso já o meu pai se havia instalado confortavelmente no seu habitual lugar e acendido o seu fiel cachimbo de madeira, já negra e marcada pelo passar dos anos, ficando então a fumegar em silêncio enquanto olhava o horizonte com encanto, durante anos não fui capaz de perceber ao certo que fascínio poderia ele ver numa planície indomável e sem fim...

Para mim aquela era a melhor altura do dia, na maioria das vezes ficava sentado nas escadas, imóvel e calado, a ouvir as pessoas que passavam dum lado para o outro, na maioria das vezes sujas e cansadas, mas sempre com um sorriso na cara.
Era uma terra mágica que encantava todos quantos a ela chegavam com intenção de não mais a deixar fosse porque razão fosse.

Recordo-me do dia em que perguntei ao meu pai porque razão tantos largavam tudo quanto tinham e para aqui rumavam sem nada mais que uma incerta promessa de prosperidade...
Não me soube dar uma resposta concreta, apenas foi capaz de esboçar um sorriso...


Eles simplesmente acreditavam em ti, Calico.