sexta-feira, 19 de novembro de 2010

Diários de Calico #3

Se há memória que não se perde é a do primeiro dia de escola. No meu caso isso seria equivalente a dizer que tenho várias memórias dessas mas, em verdade, poucas se comparam à que tenho de Calico.

A escola desta pacata cidade no meio do deserto plantada não era um edifício imponente, com ar moderno ou com um enorme letreiro a indicar a sua função. Era um edifício simples, de um só andar totalmente revestido de madeira, e apesar de ter já algumas marcas do tempo e das traquinices dos mais novos havia algo de intrigante nele que impedia de desviar a vista dele.
Apesar deste aspecto exterior algo degradado e pouco convidativo o seu interior era acolhedor, não por ser novo ou estar arranjado, muito pelo contrário.

Desde o soalho de madeira que rangia sem timidez nos mais variados tons, com os quais a criançada se divertia a compor melodias como se este de um enorme piano se tratasse, às portadas das janelas que batiam de acordo com o silvar do vento pelas pequenas falhas entre as tábuas que erguiam aquele lugar que apesar de tudo tão mágico era.

E numa dessas salas lá estava ela, sentada na sua secretária iluminada apenas pelo seu candeeiro e com os óculos pendurados ao pescoço, à espera dos seus petizes para, por uma vez mais, os fascinar com histórias dos mais famigerados fora da lei, inimigos da ordem e heróis populares, com um entusiasmo que só ela era capaz de transmitir e que nos fazia imaginar como seria cavalgar sem rumo por todo esse oeste selvagem que tantas lendas criou, território dos bravos, paraíso dos destemidos, terra da liberdade, de todos e de ninguém.

Tinha um talento natural soberbo para naquelas cerca de cinco horas nos abstrair de quaisquer adversidades do dia a dia, criando todo um imaginário de fantasia e ficção nas nossas cabeças a partir de meras letras impressas nas folhas, já amarelas da idade, daquele velho livro de capa dura e escura, digno de figurar numa qualquer biblioteca renascentista.

A sua voz convencia e o seu tom encantava, despertava o fascínio de todos quantos tinham o prazer de conviver com ela. Desde o carteiro, que todos os dias inventava uma nova razão para bater à sua porta, ao merceeiro que, no seu jeito meio grosseiro, diariamente lhe ia levar uma flor em jeito de corte numa tentativa vã de chamar a sua atenção e tentar disfarçar a sua notória falta de jeito para estas vidas de amores.
Ninguém lhe conseguia passar despercebido desde o dia em que chegara aqui. Foi acolhida como sendo a filha exemplar e há muito desejada de Calico.

Todas as histórias precisam de protagonistas e todos os romances suspiram por... algo mais...

1 comentário:

Mini disse...

Tu tens jeito.
De facto desconhecia esta tua faceta, ainda só li 3 mas já estás aprovado.