quarta-feira, 21 de julho de 2010

Calico

Grandes e imponentes máquinas a vapor delimitavam as linhas dum horizonte que não era mais selvagem, as suas chaminés as tuas montanhas, o seu fumo a tua névoa e o teu sol…as lanternas que alumiavam as tuas ruas noite fora. Foste o culminar da terrível máquina industrial mas mesmo o sendo soubeste dota-la de um coração, mais do que isso: espelhaste a alegria em todos quantos enterravam em ti as suas vidas, solo a solo, dia a dia. Foste o El Dorado dos tolos e o paraíso de poucos mas a todos fizeste promessas surreais de glória e riqueza.

Os sons das tuas engrenagens eram os cânticos que ecoavam nas cabeças das novas gerações que ansiavam um dia poder, tal como seus pais, aventurar-se nas profundezas dessa terra que já não era só tua mas vossa. Bravos os mineiros que te enfrentavam e nos teus confins buscavam a riqueza, valentes os moços das vagonetas que desciam rapidamente por esses escuros túneis tendo por amigo a boa e velha candeia que fazia das trevas nada mais que um pequeno relance de nostalgia. Melodiosos os ferreiros que trabalhavam o aço que um dia seria mais ou uma singela picareta ou o mais trabalhado dos revólveres, tamanho fascínio exercias nos viajantes que uma vez chegados não mais conseguiam partir.

E essas tuas noites cheias de luz e vida que não se restringiam aos bares e animavam as toda a cidade, o som da guitarra a ecoar por essas já poeirentas ruas acompanhado do troar do saxofone e o ritmo frenético do piano tocado pelo taberneiro (com a sua musa e amor ao lado) faziam esquecer o sofrimento da vida diurna e mudavam drasticamente as caras pálidas e poeirentas dos mineiros que, nem que apenas por um relance, esqueciam todos os perigos que os esperavam na manhã seguinte.
O teu luar que teve sempre por companheira a harmónica do velho xerife, que desde a sua cadeira no seu alpendre contemplava toda uma cidade que amava como ninguém mais poderia amar: desde o simples fumo que das chaminés subia rumo aos céus, num zigue zague constante até ao uivo dos coiotes, sem o qual com toda a certeza a sua música não seria a mesma.

Mas ninguém é eterno e também a harmónica morreu levando com ela os coiotes e quem sabe, também um pouco de ti que perdias o teu maior amante e amigo. E quando a velha companhia de mineração dá por encerrada a mina e cessa o assobio pelo vapor das velhas máquinas e os jovens não mais sentem o seu chamamento é o fim. Mineiros, ferreiros, carpinteiros, homens de arte e engenho todos são obrigados à sua última viagem na velha Maria Fumo (como tão docemente haviam apelidado a fiável locomotiva) que os levará a novos destinos com a incerteza de um dia aí voltar.

Foram-se os juventudes, ficaste tu e outros que tal como o bom xerife a ti haviam feito juras de amor. Ficou o bar, a estação, a formosa escola e o posto dos correios.
Os dias já não eram pautados por qualquer som, apenas o vento a bater nas inertes portadas de madeira que oscilavam para trás e para a frente; e as noites passava-as o taberneiro no seu bar, sentado ao piano rodeado por uma plateia incapaz, tal como ele, de deixar a vida naquela sua pequena mas acolhedora cidade.

O professor entregue ao seu gin tónico e ao seu cachimbo marcado pelos anos perguntava-se quanto tempo mais aquela espera pelo fim duraria para ser logo a seguir animado pelo coveiro, que apesar do malfadado ofício adorava todo aquele isolamento, não teve de esperar muito… Num espaço de meses ficaste sem o teu pai e mentor, que educara as tuas crianças e delas fizera homens e mulheres como nunca outra cidade tivera. O velho telegrafista não resistiu a uma pneumonia e soltaria a sua última palavra de apreço a ti na primavera seguinte. Restava agora o coveiro, o funcionário da estação e o taberneiro, perdão; apenas os dois primeiros pois oeste último farto da solidão e de intermináveis noites sentado ao piano, já com as teclas de marfim gastas pelo tempo, quis reencontrar a sua há muito perdida esposa e amor de uma vida, vítima da tuberculose.

Partia assim o último Comboio, com a certeza de nunca mais voltar.
Ficaram para trás vidas, misteriosos contos e lendas dos grandes aventureiros que um dia em ti mas acima de tudo por ti existiram. Só a Lua e as montanhas que te rodeiam se irão lembrar do velho xerife e da sua harmónica, do taberneiro enamorado pela música ou do professor que definhou no leito de morte pelo pupilo que tantos anos esperara em vão. Só eles sabem o quanto sofreram as tuas gentes e quanto te amaram. Só eles sabem quem tu um dia foste...


Calico.

sexta-feira, 9 de julho de 2010

Sonho de uma Noite de Verão

Podias ter sido tudo, mais do que um olhar momentâneo e fugaz que engana a alma e consume o coração, ser fogo e ser ardor. O teu andar sinuoso e gracioso pelas estreitas ruelas que à tua passagem se encantavam e murmuravam o canto da noite, dessa que roubavas e tornavas tua de uma maneira tão inocente quanto apaixonada. Ao teu sorriso retribuíam a mais suave das brisas que os teus cabelos tanto gostavam de acariciar; como censurar a vontade de tocar e sentir a perfeição que de ti exalta, como negar que és mais que uma mísera nota na melodia quando tu própria foste a musa, essência e alma desse cântico que fazes ecoar pela calçada, essa mesma calçada onde o Mondego conta a Coimbra os seus amores horas afim, essa mesma que tantos viu e poucos realmente sentiu.

A lenta melodia dos teus passos e o som do teu sorriso conquistam e enfeitiçam tudo quanto beijam, maldita mulher que roubas o protagonismo à senhora Lua e com ele abalas o mundo, ninguém nunca o saberá…
Revolta-me não ser capaz de to cantar, declamar ou simplesmente confessar, querer e não conseguir ser a rua pela qual o inverso de ti tanto anseia ou simplesmente não te saber tocar sem estragar a Ode que a tua existência é.
És vida para qualquer amante desta, heroína dos loucos e panteão da imaginação.

Poderias de facto ter sido tudo isso, mas nem eu sou a rua que queres nem tu saberias como tocar de letra nela, és delicadeza e rebeldia és demasiado para tão pouco coração, enlouqueces com um olhar para a seguir entristecer com um sorriso que nunca será meu, do qual nunca poderei ser razão ou ladrão. És o sonho efémero de uma noite de verão. Dessa noite que nunca será nossa, numa rua que nunca poderia ter sido a minha. Nada disto teria sido real

Apenas tu…


03h01
9 de Julho de 2010

quarta-feira, 7 de julho de 2010

Cinema Paraíso

Reluzentes cadeiras de estofos escarlate essas que povoavam as tuas amplas salas, catedrais e mausoléus de glória e arte.
Ansiosas a cada nova sessão, como tão bem as habituaste, por saber quais os amores e traições reservadas a esse galã que, apesar de ser o mesmo de sempre, cheirava a novo. Fascinavam-se com as suas falas, rejubilavam de cada vez que a sua espada decepava um após o outro todo um exército de bárbaros, exaltaram com cada novo amor para por fim, no seu leito de morte chorarem desalmadamente, após míticos dragões e bestas derrotadas a sua existência cessava por força do velho inimigo – o tempo esse que não perdoa.

Foram o conforto de milhares, com eles riram, gritaram de horror até à exaustão e desesperaram com os dramas e os romances impossíveis. As mais fiéis companheiras que um amante da sétima arte pode encontrar nesse mundo aparte que Tu e só Tu poderias criar. Forrado a negro, com as tuas letras tatuadas em tons de sangue pelas tuas filas que desciam suavemente rumo ao palco dos sonhos onde tudo é possível e o nosso imaginário pode vezes sem conta correr livre e inocente.

Ensinaste como as estrelas beijam a noite e como a areia seduz as ondas do mar, ensinaste que a miséria da vida é suplantada por efémeros momentos de pura alegria.
Deliciaste crianças com os teus contos fantásticos dos grandes heróis da história, aterrorizaste com alguns dos mais horrendos vilões que algum dia tiveram o desprazer de conhecer. Gelaste-me de medo deixando-me sozinho no meio daquele oceano de silêncio e escuridão para logo de seguida me aqueceres com o fogo do teu projector e as melodias que das tuas negras colunas saíam incessantemente.

Como se puderam esquecer de ti e entregar-te de forma tão decidida ás aranhas, como puderam deixar que o teu negro fosse acinzentado pelas inúmeras teias que tingiram as tuas paredes, como deixaram o pó tocar no teu soberbo projector, como diz-me como!? O escarlate está agora manchado com as lágrimas que vertes após tantos anos a fabricar alegrias e fantasias. O teu ar clássico marcou toda uma geração, filhos foram pais, foram avós mas, Tu nunca mudaste e uns após os outros a todos foste refúgio e fonte de inspiração.
Como puderam fazer-te isto, deixar-te morrer assim e pior que isso, sem nunca se terem despedido de ti. Tu que foste mentor e professor, foste pai, irmão e filho mas muito mais que isso...


...foste Cinema Paraíso.

05h59
7 de Julho, 2010