Passada após passada, cruzava aquela cidade que apesar deserta e ainda mais escura parecia convidar para um longo passeio de modo a desfrutar de uma calma que de dia não existe. Enquanto passava por um parque reparou em 2 pássaros empoleirados num ramo e encostados um no outro...Agora até uns quaisquer animais troçavam da sua solidão, que raio se passava, porque razão tudo isto estava a acontecer tão subitamente, durante dez anos nada nem ninguém lhe haviam suscitado comportamentos ou emoções humanas, nas 6 horas passadas tudo parecia ter voltado à vida em si, as emoções, os sonhos, até os medos que há dez anos o haviam abandonado de tão tormentosa que era a sua mente.
Deu mais uns passos até que reparou em alguém que se encontrava sentado num muro á beira rio, curioso aproximou-se na esperança de pelo menos poder partilhar da companhia e daquele luar sombrio.
Chegado ao pé do vulto sem ter dito uma única palavra apenas ouviu:
-Venho para aqui acima de tudo ouvir, e que ouço eu? O silêncio da noite, os gritos mudos das folhas que caem em direcção ao rio ou das gotas de água que escorrem pelos candeeiros, o pó que sozinho se levanta e viaja até onde o vento o levar... Sim... Para ouvir...
Ouvir o que normalmente não tem som, ver o que não pode ser visto, sentir o que não existe, ser o que não fomos...de pouco adianta agora, até um dia destes meu jovem...e lembra-te, não existe o nunca.... Apenas uma infinidade de contradições...
Dito isto afastou-se deixando Manuel profundamente calado mas ao mesmo tempo surpreso, há muito que não ouvia algo assim, aquela voz rouca e grave dava a ideia de uma pessoa de idade mas o entusiasmo com que havia sido dito sugeria alguém jovem e ansioso por viver, este antagonismo era realmente inquietante, sem ouvir com os olhos sentia-se perdido, não sabia se deveria considerar aquele monólogo como um legado de toda uma vida gasta ou a expectativa de toda uma vida pela frente Seria um ensinamento ou um devaneio tolo? Estava realmente tudo contra ele, mas que fazer? Sentia-se pequeno perante aquelas palavras ditas de forma serena mas sólida.
Ele é que se havia aproximado do vulto, não havia sido chamado, ouviu porque queria ouvir, no fim de contas era isso que pretendia de inicio, ouvir, e naquele momento ouvia muito mais do que alguma vez ouvira, o silêncio parecia mesmo murmurar algo para com as folhas ou as gotículas de água, quem sabe se não seria a história daquele estranho personagem que... nesse momento reparou em algo a abanar levemente ao sabor daquela brisa que se havia levantado, um papel, OUTRO PAPEL! Apressara-se a agarrá-lo antes que este tivesse oportunidade de fugir para longe dali, desdobrou-o e numa letra algo ilegível conseguiu ler:
"Através das eternas ondas do tempo ele virá
tal como da pequena onda nascerá a tormenta"
Ficara simplesmente petrificado, agora mais do que nunca estava convencido que aquele homem não havia dito aquilo apenas para parecer bonito, ele sabia algo que lhe escapava, era necessário a todo o custo achá-lo, mas não seria àquela hora nem tão pouco naquele estado que o faria, era preciso cabeça fria acima de tudo. Optou por isso por guardar aquele estranho papel e analisá-lo novamente mais tarde.
Enquanto caminhava mais decidido do que nunca a fechar aqueles dez anos da sua vida e com eles todos os demónios que deles se alimentavam, uma enorme melancolia tomou posse sobre o seu corpo durante os minutos que se seguiam, era muita coisa a acontecer ao mesmo tempo, para muitas ainda não havia arranjado uma justificação nem tão pouco uma razão, estava completamente as escuras, tal e qual como a rua para onde se dirigia...
A meio da rua apercebera-se de que estava a ser seguido, conseguira distinguir três vultos por entre as sombras mas nada lhe garantia que não houvessem mais, seria totalmente irreflectido correr ou executar qualquer acção... Estava preso num xadrez humano que não pretendia jogar e como é sabido, as brancas começam...